Enquanto subíamos as escadas e você repetia “só não repara a bagunça, não pensei que teria visita hoje” eu só tentava conter o meu coração, disparado, dentro do peito. Ao abrir a porta, entoou o clássico “fica à vontade” e saiu em disparada recolher algumas peças de roupa do varal na sacada. Chamou por dois sabores de pizza e não sendo respondido com miados, saiu atrás das bichanas. Ouvi você expressar algo no mesmo tom de um pai que flagra uma criança fascinada com um pacote inteiro de farinha no chão, como se fosse neve. Repetiu “fica à vontade” de dentro do quarto e trocou mais algumas palavras, sendo retrucado com uma indignação felina.
O apartamento era bem arejado e iluminado. Caminhei até a sacada e me surpreendi com o horizonte amplo, apesar do segundo andar. Reconheci a rede amarela que vi em algum stories e imaginei nós dois no chamego sob as cores e sabores do pôr do sol. Hesitei embalar meu corpo e pensamentos… me detive a sentir a textura do tecido em minhas mãos.
Neste momento percebi a churrasqueira e o cantinho dos preparos e temperos. Sorri sozinha com o sal grosso derrubado e imaginei o roteiro de um domingo com churrasco e caipirinha. Novamente, nós dois entrelaçados nos preparos, eu cuidando para o ponto da carne corresponder com a suculência de “lamber os beiços” e você com a proporção mágica de gelo, açúcar, limão e vodka ao som de uma música alegre e miados.
Embriagada pelas ficções, com o coração mais calmo, reparei naquela xicrinha Duralex de cor âmbar sob o parapeito da churrasqueira. Justamente o mesmo modelo que utilizo como medida padrão para minhas receitas de bolo. Nosso “algo em comum” materializado em uma xícara. Meio piegas, eu sei. Mas foi o gancho para a próxima cena da fanfic mentalizada enquanto te esperava.
Sábado de tarde, dia perfeito para fazer um bolo de chocolate. Mesmo sem ter ido até a cozinha, imaginei a mesa, os ingredientes dispostos, como sempre faço, e uma bagunça boa com nossas crianças ajudantes de confeitaria. Farinha, cacau em pó, ovos, açúcar, óleo, água quente, fermento e aquela pitadinha de sal compunham o cenário e os takes. Você untava a forma, eu batia a massa, e os pequenos faceiros, fazendo festa com a descoberta das patinhas de coelho com farinha… pude ouvir o riso infantil invadir o ambiente e meus olhos marejaram.
Emocionada, dei alguns passos para perto da churrasqueira. Estiquei o braço e peguei a xícara. Não acreditei no que vi. Todos meus sonhos e fantasias destruídos. Por que inventei de tocar na xícara? Por quê? Um golpe fatal no meu romantismo. Um golpe cruel demais para uma boleira de mão cheia como eu. Aquela xicrinha âmbar, tão significativa para mim, para ti nada mais era que um depósito de bitucas! Atônita, repousei a louça no lugar e me direcionei para a sala.
Sentei no sofá. Questionei o que estava fazendo ali. Uma das gatas apareceu e repousou tranquilamente ao meu lado. Misticamente, dizem que os felinos são capazes de afastar as más energias… não tive dúvidas que ela sentiu os cacos do meu coração de vidro âmbar quebrar e veio acudir com seu sexto sentido. Perdi a noção do tempo. Só sei que estive absorta na ilusão e no chamado ao real de que o príncipe encantado não existe: ele faz de cinzeiro a xicrinha âmbar. Calabresa gostou do carinho e eu me senti melhor. Já estávamos há um tempo como velhas conhecidas de cafuné e ternura, quando você retornou à sala.
Não lembro o que você comentou, mas nunca esqueci o beijo e a capacidade de fazer meus pensamentos se aquietarem. Deve ser por isso que quando raramente te vejo sou impulsionada a buscar o teu abraço: já te perdoei pela xicrinha.