Do café ao vinho

Nosso primeiro beijo teve gosto de café. Café passado dos teus lábios para os meus. Café roubado no meio de um corredor. Assim, inusitado.

Cafeína da vida. Coração acelerado.

Na garagem, gostos vindos da rua. Halls e cigarro de um encontro inesperado, de última hora, combinado. Mundano, profano.

Mas sagrado.

Consagrado com vinho, nosso corpo, um só. Notas de amor puro e paciente, amadurecido em barris de saudade.

Fumaça

Hoje eu fumaria um maço de cigarro tranquilamente

E ficaria olhando para a fumaça

Para descobrir os segredos do mundo

O que está oculto e os caminhos para ver as verdades não ditas

Fumaria um maço de cigarro

No imaginário dançante da fumaça

Impregnando meu pulmão

De ameças

Minha nicotina

Sentei na cama com uma sensação estranha. Uma calmaria nunca antes sentida. Não era só aquele relaxamento após bagunçarmos os lençóis. Senti meu corpo deslocado dos sentidos e levitando sobre o colchão. Como se o tempo tivesse parado e minha mente se esvaziado por completo. Nenhum problema nem pensamento, sequer o barulho dos carros passando na rua atingiam meus ouvidos. Sua voz, perguntando se eu queria água, me fez sair daquele transe momentaneamente. Não lembro se te respondi ou se só balancei a cabeça, mesmo sozinha naquele quarto.

Minha mente, sempre tão inquieta, sempre tão dinâmica em suas mirabolantes imaginações estava em silêncio profundo. A estranheza me tomou de assalto. Busquei recordar as tarefas do dia seguinte, sem sucesso. Tentei focar nos detalhes do cômodo e descrevê-los como forma de testar se minha capacidade cognitiva ainda estava ali. Com algum esforço percebi os detalhes da persiana, da janela, e nossas roupas no chão.

Não sei quanto tempo fiquei ali sentada, nua. Silêncio em mim. Questionei se a definição de serenidade seria aquela tranquilidade de piscar os olhos lentamente. Senti frio. Deitei e puxei a coberta, me aninhando para dormir. Logo você voltou.

Nos afastamos depois de uma noite insana em que parei com o carro na porta do teu prédio, querendo um sopro de uma sensação que eu não sabia explicar. Fiquei muito tempo envergonhada pelo rompante, pois, de certa forma, não conjugava aquela plenitude sólida e tranquila que experimentei da última vez que estivemos juntos.

Passaram meses.

Em uma reunião de colegas, regada a vinho e confissões, ouço o relato de um ex-fumante. Sua narração sobre os efeitos da nicotina após uma recaída foram exatamente iguais ao que, para mim, até então, era inexplicável. Descobri minha nicotina.

Aquela xicrinha âmbar

Enquanto subíamos as escadas e você repetia “só não repara a bagunça, não pensei que teria visita hoje” eu só tentava conter o meu coração, disparado, dentro do peito. Ao abrir a porta, entoou o clássico “fica à vontade” e saiu em disparada recolher algumas peças de roupa do varal na sacada. Chamou por dois sabores de pizza e não sendo respondido com miados, saiu atrás das bichanas. Ouvi você expressar algo no mesmo tom de um pai que flagra uma criança fascinada com um pacote inteiro de farinha no chão, como se fosse neve. Repetiu “fica à vontade” de dentro do quarto e trocou mais algumas palavras, sendo retrucado com uma indignação felina.

O apartamento era bem arejado e iluminado. Caminhei até a sacada e me surpreendi com o horizonte amplo, apesar do segundo andar. Reconheci a rede amarela que vi em algum stories e imaginei nós dois no chamego sob as cores e sabores do pôr do sol. Hesitei embalar meu corpo e pensamentos… me detive a sentir a textura do tecido em minhas mãos.

Neste momento percebi a churrasqueira e o cantinho dos preparos e temperos. Sorri sozinha com o sal grosso derrubado e imaginei o roteiro de um domingo com churrasco e caipirinha. Novamente, nós dois entrelaçados nos preparos, eu cuidando para o ponto da carne corresponder com a suculência de “lamber os beiços” e você com a proporção mágica de gelo, açúcar, limão e vodka ao som de uma música alegre e miados.

Embriagada pelas ficções, com o coração mais calmo, reparei naquela xicrinha Duralex de cor âmbar sob o parapeito da churrasqueira. Justamente o mesmo modelo que utilizo como medida padrão para minhas receitas de bolo. Nosso “algo em comum” materializado em uma xícara. Meio piegas, eu sei. Mas foi o gancho para a próxima cena da fanfic mentalizada enquanto te esperava.

Sábado de tarde, dia perfeito para fazer um bolo de chocolate. Mesmo sem ter ido até a cozinha, imaginei a mesa, os ingredientes dispostos, como sempre faço, e uma bagunça boa com nossas crianças ajudantes de confeitaria. Farinha, cacau em pó, ovos, açúcar, óleo, água quente, fermento e aquela pitadinha de sal compunham o cenário e os takes. Você untava a forma, eu batia a massa, e os pequenos faceiros, fazendo festa com a descoberta das patinhas de coelho com farinha… pude ouvir o riso infantil invadir o ambiente e meus olhos marejaram.

Emocionada, dei alguns passos para perto da churrasqueira. Estiquei o braço e peguei a xícara. Não acreditei no que vi. Todos meus sonhos e fantasias destruídos. Por que inventei de tocar na xícara? Por quê? Um golpe fatal no meu romantismo. Um golpe cruel demais para uma boleira de mão cheia como eu. Aquela xicrinha âmbar, tão significativa para mim, para ti nada mais era que um depósito de bitucas! Atônita, repousei a louça no lugar e me direcionei para a sala.

Sentei no sofá. Questionei o que estava fazendo ali. Uma das gatas apareceu e repousou tranquilamente ao meu lado. Misticamente, dizem que os felinos são capazes de afastar as más energias… não tive dúvidas que ela sentiu os cacos do meu coração de vidro âmbar quebrar e veio acudir com seu sexto sentido. Perdi a noção do tempo. Só sei que estive absorta na ilusão e no chamado ao real de que o príncipe encantado não existe: ele faz de cinzeiro a xicrinha âmbar. Calabresa gostou do carinho e eu me senti melhor. Já estávamos há um tempo como velhas conhecidas de cafuné e ternura, quando você retornou à sala.

Não lembro o que você comentou, mas nunca esqueci o beijo e a capacidade de fazer meus pensamentos se aquietarem. Deve ser por isso que quando raramente te vejo sou impulsionada a buscar o teu abraço: já te perdoei pela xicrinha.

Moço do TI

Vou abrir um chamado
Pro moço do TI vir aqui
A internet caiu,
O sistema não inicia
Todo dia a mesma rotina
Eu invento tudo só pra te ver

Você ri do meu jeito desastrado
Todo dia um chamado inusitado
Ontem foi o café derramado no teclado
Hoje o estabilizador desligado

Talvez você já esteja desconfiado
Que meu coração foi hackeado
O ex foi deletado
Arquivo corrompido, irrecuperável

ôôô moço do TI,
não paro de pensar em ti

Pra qual setor eu abro um chamado pro teu amor?

Conto do feijão

A cada dia, uma espinha nova no rosto. Pensou que era do chocolate. Decidiu cortar. Não houve melhora no aspecto facial, mais oleoso que o habitual. Voltou para o chocolate e promoveu o senso comum, usado como desculpa para todas questões femininas: “hum, devem ser os hormônios”.

Acordou com vontade de comer feijão fradinho. Há anos não come. Procurou nos mercados do bairro. Não tinha. Ligou a TV no programa de culinária, a triste coincidência gastronômica: salada de feijão fradinho! Que água na boca! O desejo pelo cereal aumentou quando lembrou que caldo de feijão fradinho combina com bacon. Salivou. Prometeu atravessar a cidade em busca do feijão fradinho.

Subiu na balança da farmácia e comemorou o “quase um quilo” ganho em menos de um mês. Sem esforço. Brincou consigo mesma que o biotônico ingerido na adolescência deu resultado tardio.

Olhou o calendário, calculou os dias. Num misto de medo e coragem da própria sorte pensou “será que ele gosta de feijão fradinho?”.

Resolveu dar um tempo para voltar a farmácia e comprar o dito teste. Foi viajar. Quando chegou ao destino, sentiu o calor entre as pernas. Não sabe se sua reação foi de alívio ou decepção. Afinal, como justificar os acontecimentos se não há um bebê neste ventre, implorando por um bom prato de feijão fradinho?

mapa astral

vou desvendar teu mapa astral
mergulhar nas tuas contradições
lua, marte, vênus,
terra, sol e mar,
ascedente, descedente, solar…

signos, casas, graus
que conjunções no céu
vão dizer com maestria
a sinastria
da nossa relação?

touro, câncer ou escorpião
o calor do teu beijo
as roupas no chão
puro desejo

e nós
só nós
na imensidão

Roteiro

– Pera ae, disse ele.
Afastou-se, em slow motion fechou os olhos
Movimentou a mão esquerda para o lado direito do rosto
Vagarosamente tocou na haste do óculos
E o retirou da face
Estendeu o braço até a banqueta
Onde repousou o dispositivo óptico

A cena mais bonita
Desnudar o olhar

4 anos

4 anos não são 4 meses. Nem 4 semanas, muito menos 4 dias.

4 anos são 35.040 horas.

4 anos é o tempo que leva entre uma Copa do Mundo e outra. É tempo demais para só bater na trave e não fazer o gol. Confesso que gostei muito de cada treino neste período. Só que jogadora que nunca é escalada para uma partida fica um pouco chateada, no final, não é? Aquele jogo maroto, sem compromisso, com entrega, com reciprocidade… Ah, como eu desejei um amistoso para colorir nossa amizade. Mas se a tua preferência fosse uma partida oficial, eu me sentiria vitoriosa ao entrar na tua vida.

4 anos é tempo demais para manter uma paixão. Eu não estive apaixonada por 4 anos. Na verdade, três vezes estive completamente apaixonada por ti. E caí as três. Levantei. Como as estações, os sentimentos foram e voltaram. Foram e voltaram. As vezes mais intensos e inquietantes, noutras mais tranquilos e confortantes. Até que um dia, nestes últimos 365, eu me dei conta de que não era mais paixão, também não era capricho. Era algo maior. E deixei um bilhete na tua caixa de correio. Eu não estava bêbada, nem apaixonada. Mas eu sabia exatamente ao lado de quem eu queria estar.

4 anos é o tempo que separa aquele cara de calça jeans larga e desbotada que carregava uma pasta de couro surrada do cara estiloso, com barba e carro com roda de bandido fosca. 4 anos é o tempo que separa os meus olhos brilhantes do nó na minha garganta.

4 anos e eu te eternizei em uns textos piegas, de menina apaixonada. Eu te transformei em muso, em personagem aviador, no homem que eu queria ter ao meu lado. Eu criei um mundo bonito, de carinho, de companheirismo, de amizade, que eu acreditei ser o lugar recíproco do amor.

4 anos e a atração virou paixão que virou amor. Sim, eu te amo. E agora estou juntando as peças do coração espatifado, triturado… para transformar esse monte de sentimento bom que tenho por ti em um sentimento ainda melhor. E essa é a maior verdade e a maior dificuldade também. Abafar o “te quero”, reprimir ainda mais o desejo em prol de uma amizade que eu considero que ainda vale a pena.

4 anos não são 4 meses. Nem 4 semanas, muito menos 4 dias.

4 anos são 35.040 horas.

Mas se eu passo mais de 1/4 de hora do teu lado, eu esqueço que preciso ser alquimista e transformar o amor-desejo em amor-amigo. 1/4 de hora, meu coração aquece e só quero me perder no teu abraço.